Oque para muitos era mero catastrofismo ecológico, ou nas palavras da extrema direita, “psicose ambientalista”, se tornou realidade no Rio Grande do Sul. Desde o dia 29 de abril, com o primeiro alerta vermelho do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), o que se viu no Estado foi uma tempestade perfeita na qual a negligência ambiental emergiu da austeridade econômica.
Como se não bastasse, tudo que é ruim pode piorar. O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), aproveita da tragédia para privatizar a própria reconstrução da cidade com a contratação da empresa estrangeira Alvarez & Marsal, que atuou diretamente na privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan). Já o governador Eduardo Leite (PSDB) admitiu ter ciência dos estudos sobre os riscos climáticos, mas, em suas palavras, “nossa prioridade era restabelecer a capacidade fiscal do Estado”.
A naturalidade com que Leite reconheceu sua omissão indica como a doutrina da austeridade se incorporou ao discurso político com a força de uma lei da física. Para os liberais e similares, as supostas leis da economia se impõem como um fenômeno natural – ou mesmo uma manifestação da vontade divina. Por isso, não surpreende que Gary Mongiovi classifique a austeridade como um “evangelho” que apregoa um crescimento econômico impulsionado “não pela atividade produtiva e pelos gastos dos trabalhadores, mas pela abstinência virtuosa dos capitalistas”, o que implicaria em sacrifícios, pois é “preciso resistir às demandas dos trabalhadores por salários mais altos e menos horas de trabalho”. A pretensa linguagem técnica e despolitizada dos liberais, no final das contas, não resvala no discurso teológico à toa. Para além de um evento natural, as enchentes no Rio Grande do Sul se tornaram um cenário político no qual entram em disputa visões sobre o Estado, a natureza, o indivíduo e a religião.
Como em uma espécie de patologia política oportunista, se disseminou nas redes sociais postagens sobre a ineficácia absoluta do aparato estatal em socorrer a população diante da catástrofe. Evidência disso é a difusão massiva de vídeos de resgates e ações realizadas por empresários, políticos e celebridades. Ao contrário dos engessados e ineptos agentes públicos, o heroísmo e a disposição corajosa destes indivíduos comprovariam o caráter parasitário e ineficiente do Estado. A reboque dessas narrativas inspiradoras e consoladoras se propagavam, como que a contrabando, inúmeros discursos ideológicos da extrema direita, em uma de suas variações seculares: a anarcocapitalista ou a religiosa.
O Deus bíblico e a mão invisível do mercado
Liberais, anarcocapitalistas e fundamentalistas cristãos comungam da mesma fé no individualismo extremado, desqualificando quaisquer categorias que não se reduzem ao indivíduo e sua agência racional e virtuosa. Esse atomismo ontológico, que encara a realidade como um imenso aterro ocupado por um sem-número de peças de Lego, os indivíduos e as coisas, guarda em si uma consequência teológica. Tanto para liberais, como para libertários de direita, católicos e evangélicos radicalizados, essa ontologia individualista só admite dois tipos de leis supra-individuais reguladoras: a divina e a econômica.
Perante o Deus bíblico e seu julgamento e o Deus mercado e sua mão invisível, as leis cristãs e econômicas só reconhecem como ente legítimo o indivíduo, pois só ele é passível da graça da salvação/riqueza ou do castigo danação/miséria. Todo o resto seria, na atual palavra esvaziada de sentido pelas redes sociais, mera “narrativa” da esquerda, independentemente de se tratar de uma pandemia, da sociedade, dos direitos humanos, do aquecimento global, do capitalismo ou da exploração do trabalho.
Na atual circunstância, exaltar a ação virtuosa de indivíduos extraordinários, sejam eles Youtubers, empresários do ramo do varejista ou humoristas de stand up, não serve apenas para justificar a implementação do “Estado-mínimo”, essa panaceia de fundo incomensurável, mas é, de fato, a negação da existência de um espaço público, ou de modo mais preciso, de um “comum da humanidade”. Na corrosão do espaço público, também se legitima a rejeição da solidariedade entre trabalhadores, da ação coletiva, assim como se declara a ausência de perspectivas partilhadas socialmente.
“O que significa não apenas a ocupação empresarial das funções atribuídas ao Estado democrático burguês, mas também a tomada dessas funções por parte das igrejas.”
Logo, desgastar a imagem do Estado perante a população é uma operação discursiva que não se limita a incitar a desconfiança da população frente a classe política. O que se tem a rigor é uma disputa cosmopolítica, nos termos definidos por Hilan Bensusan: uma “forma de atenção que entrelaça a natureza cósmica das decisões políticas humanas com o crescente impacto cósmico dessas decisões”.
Quando um liberal encara a austeridade como uma espécie de destino iniludível, ao ponto de ignorar estudos climáticos, ou um prefeito coloca como causa da enchente a grande quantidade de templos de matriz africana no Rio Grande do Sul, não estamos mais no terreno da gestão pública, das disputas eleitorais ou de diferenças partidárias. A contenda é pela agência, propósito e consequências envolvendo o humano, o natural, o social e o individual – e até o sobrenatural. Todos estes, ainda segundo Bensusan, encontram-se emaranhados e envolvidos pelo evento cosmopolítico do poder do Capital que
“dissolve, erode, desterritorializa e derrete códigos e práticas pré-existentes […] tem um efeito marcante no planeta e eventualmente para além dele; sua pulsão é por converter coisas em mercadorias e precificar cada uma delas. Sua marca epocal é a da mercantilização que gradualmente também inclui corpos e agência humanos”.
O papel das redes sociais
No âmbito cosmopolítico, a direita fornece a já citada ontologia dos indivíduos, que ao se implantar nos limites da política e gestão dos aparatos estatais, limita sua ação à privatização de absolutamente qualquer ente que se suponha ser coletivo e/ou público. O que significa não apenas a ocupação empresarial das funções atribuídas ao Estado democrático burguês, mas também a tomada dessas funções por parte das igrejas. O Estado e seus mediadores, sejam eles políticos, cientistas, burocratas, professores, juízes e demais peritos, devem ser suprimidos por representarem pretensas ordens do real que não encontram referência, em sentido freguiano, em partes do conjunto de indivíduos tidos como legítimos. Muito dessa concepção se deve ao modo como as redes sociais estruturam não só as informações, mas a subjetividade e as cosmovisões de seus usuários. A negação do sistema de peritos, nas palavras de Letícia Cesarino, é efeito direto da ilusão de imediatidade e de transparência quanto a circulação de informações que as redes sociais produzem em seus usuários.
Essa infecção ideológica oportunista que se verifica no Rio Grande do Sul é a ponta final de um longo processo que teve seus inícios, no mínimo, durante a Lava Jato, passando pela admissão da extrema direita no jogo democrático burguês e que se consuma agora na disseminação cada vez mais ampla de teses que antes se limitavam a guetos virtuais na internet ou a igrejas neopentecostais. A própria propagação da ideologia do empreendedorismo já garante que essa ontologia (e ética) individualista se popularize, e reforce ainda mais o ataque da extrema direita contra o Estado e a qualquer noção mínima de vida em comum.
Como agravante, a reação da esquerda diante do avanço neoliberal e conservador tem se concentrado em uma defesa automatizada e irrefletida que acaba por recair em uma espécie de estadocentrismo, que resvala na maior parte das vezes em uma apologia desesperada das virtudes civilizacionais do Estado democrático de direito – e nada mais que isso. A cada movimento da direita testando os limites da ideia de liberdade de expressão, parte da esquerda reage ou em um registro abertamente punitivista (“X é crime, prenda-se”) ou paternalista (“Y é ignorante, falta-lhe estudo). A justificativa para essas posturas seria que “com fascista não se debate”, ou outras palavras de ordem bem fundamentadas em memes ou postagens de redes sociais. Outra opção, mais compassiva com os “inimigos”, seria a que identifica os ataques às benesses estatais como derivadas de um déficit de serviços públicos. Quanto mais gestão pública, mais programas governamentais e quanto mais inclusão, menor o índice de fascismo na sociedade.
“Nossa tragédia é que a aliança entre ultraliberais e conservadores lançou partes consideráveis da esquerda não só no estadocentrismo, mas no abandono em definitivo de qualquer horizonte utópico.”
O punitivismo, o paternalismo e a compaixão partilham de um profundo estadocentrismo que encara o humano de uma maneira tão reificada como a defendida pela ontologia individualista da direita. No lugar de entes atomizados e racionais deliberando sempre pelo seu bem, conforme a praxeologia de Ludwig von Mises, ou cristãos salvos pelo sangue de Cristo, essa esquerda opta por indivíduos vistos como receptáculos passivos na espera pela chegada de programas e legislações que o torne portador de direitos. Tudo isso garantido pela Carta Magna de 1988, e no caso dos insatisfeitos, pela caneta de Alexandre de Moraes.
Enquanto isso, a direita idealiza o indivíduo, com perdão do termo, empoderando-o, colocando seu destino em suas próprias mãos. Cada indivíduo livre, ressalte-se esse livre, é um Elon Musk em potencial, seja ele um MEI ou empreendedor do ramo de marketing multinível. Esse empoderamento mítico do indivíduo com cada um vivendo uma escatologia pessoal e intransferível, seja ela redundando em fracasso ou sucesso, não esvaziou apenas as propostas da esquerda, ou a eficiência do Estado, mas qualquer renovação da ideia de utopia, nos termos que sempre foram tão caros à esquerda.
Que fazer?
Nossa tragédia é que a aliança entre ultraliberais e conservadores lançou partes consideráveis da esquerda não só no estadocentrismo, mas no abandono em definitivo de qualquer horizonte utópico. Acabamos nos tornando partidários do partido da ordem e da civilização como ela se coloca atualmente: eleições regulares, escolha de um corpo político de representantes legislando e executando leis com base em decisões de peritos cientificamente bem embasados na tentativa de fazer com que o capitalismo consiga ao mesmo tempo se expandir e melhorar a vida dos cidadãos. Há evidência maior da aceitação e absorção do ethos neoliberal em nosso campo político?
Entre receptores passivos do maná dos direitos sociais e potenciais heróis vitoriosos na guerra concorrencial entre indivíduos, qual discurso, tendo em vista as ruínas impostas pelo neoliberalismo, apresenta maior apelo? Antes da Lava-Lato, a despolitização foi causada pela própria esquerda que, ao ascender ao poder no Estado nacional brasileiro burocratizou movimentos sociais e, por conseguinte, lançou a população no longo processo de quietismo cidadão: aguarde, amigo, o ciclo de desenvolvimento econômico assentado na Constituição Cidadã vai te permitir uma vida plena e digna, mas aguarde aí, que estamos tratando desse ciclo histórico para você.
“A constatação, a começar pelo próprio Marx, passando por Lênin, Rosa Luxemburgo, chegando a Poulantzas e Althusser, que o Estado não é uma entidade inerte e perene, mas um espaço político a ser disputado.”
Levar a sério diagnósticos, análises e estudos baseados em evidências cientificamente fundamentados quanto a certeza que o interesse coletivo, não só humano, como não-humano, quando pensamos no âmbito da biosfera como um todo, não pode ser satisfeito com base em ações individuais isoladas e pretensamente nobres pode nos fornecer algo próximo à verdade, mas não é o suficiente para atiçar a imaginação política de partes consideráveis da população.
A partir disso, o que resta? Primeiro, a constatação, que não é novidade na tradição crítica marxista, a começar pelo próprio Marx, passando por Lênin, Rosa Luxemburgo, chegando a Poulantzas e Althusser, que o Estado não é uma entidade inerte e perene, mas um espaço político a ser disputado. Mas que disputa é essa? É a democracia das eleições cíclicas que com base em leis elaboradas pela melhor inteligência nacional vai regulamentar smartphones e a internet, iluminar almas com Institutos Federais e, nos casos omissos, recorrer ao “Xandão”? A condição para politizar os despolitizados, um dos alvos preferenciais da direita, não pode se resumir a continuidade abertamente reativa, e porque não, reacionária, e conservadora da fórmula da paz que já não funciona desde os anos 2000.
O petismo, no seu papel de gestor das ruínas do desenvolvimentismo brasileiro, abriu mão de fornecer um horizonte de expectativas crescentes, apresentado como substituto da utopia vagas em políticas públicas. Enquanto isso, nosso impasse civilizacional parece que será decidido, no fim das contas, pela vitória demográfica de evangélicos e pela expansão do agronegócio Amazônia adentro. Por isso, é óbvio que vivemos um embate cosmpolítico. De um lado temos o messianismo apocalíptico de neopentecostais, do agronegócio, garimpeiros e demais agentes patógenos da biosfera que crêem no fim do mundo, mas que são intrinsecamente otimistas em sua ânsia de pilhar até o último pedaço do país em nome de Deus. Do outro temos os gestores apocalípticos das barragens civilizatórias iluministas que conhecem o fim do mundo, mas que tentam a todo custo freá-lo com eleições, democracia, editais e serviços públicos – e a polícia, é claro.
Resta saber quem vai dar as costas a ambos cultos apocalípticos e não oferecer apenas gozo delirante ou desespero burocrático diante do fim da atual configuração do mundo. Ao se encastelar no Estado como ultima ratio perante a barbárie, seja ela a dos empreendedores ou dos pastores, a esquerda se coloca como nos últimos versos do poema À Espera dos Bárbaros, do poeta grego Constantino Kaváfis (1863-1933): “Sem bárbaros o que será de nós? Ah! eles eram uma solução”.